sexta-feira, 14 de junho de 2013

07 de junho de 2013. A polícia civíl organizou uma operação no estado do Rio para conscientizar os donos de bares e o público em geral sobre a proibição da venda de bebidas alcoólicas a menores de idade. Nossa pauta era acompanhar um grupo de policiais da DPCA que faria esse trabalho na região da Lapa. Ao chegarmos à delegacia descobrimos que estávamos uma hora antecipados. Então o que fizemos foi esperar. Fiz imagens da fachada, conversamos, jogamos Candy Crush. Chegando próximo ao horário combinado, entramos na delegacia para entrevistar a delegada e, lá dentro, havia dois meninos sentados à uma mesa atrás da recepção. Ambos pareciam ter no máximo dez anos. Um, sem camisa, estava encolhido e esfregava os braços tentando se esquentar. O outro estava de costas, com as pernas sobre a cadeira, e usava a própria camisa para cobrir o corpo todo de maneria que só a cabeça estava de fora. Foi a repórter quem me mostrou os dois, dizendo que eles foram apreendidos por roubarem um celular próximo à Central do Brasil. Depois de um minuto ela disse "nossa, aquele menino parece estar cheio de frio. Sem camisa". Perguntou se eu sentia pena. Olhei, pensei. Sentia pena, sim. Eles não tinham a menor ideia do que estava se passando ali. O policial lia o registro de ocorrência feito, com termos técnicos e palavras defíceis, e era claro que as crianças não estavam entendendo nem 10% do que estava escrito. Mas não era por isso que sentia pena. Descobri que um tinha 8 anos e o outro 14, mas com aparência de 9 por ser tão franzino, e percebi que na verdade eles eram as vítimas. Aquelas crianças ainda não tinham discernimento dos seus atos. Eram vítimas de maus exemplos, de descaso dos pais, de políticas de educação ineficientes. O que eles vão ser no futuro além de bandidos? "Ah, não. Disso não tenho pena, não. Tem que ser preso mesmo. Perguntei se você estava com pena por ele estar com frio". Um dos policiais deu um biscoito de água e sal para o menino que estava de camisa e ele retribuiu com um sorriso.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

22 de março de 2013. Depois de várias tentativas de negociação e troca de acusações, o governo do estado do Rio de Janeiro decidiu desocupar a "Aldeia Maracanã", situada em um prédio histórico, abandonado até alguns meses antes, ao lado do estádio de mesmo nome. Antes de ir para a emissora já sabia que a situação era tensa. A tropa de choque da polícia militar estava presente para conter os manifestantes, retirar os índios e garantir a desocupação do terreno. Por volta de 11h15, cheguei para render a equipe que estava lá desde as 6h. Estava tumulto, porém organizado. Os índios ainda persistiam dentro do terreno, os manifestantes estavam isolados pela tropa de choque no canteiro central da Radial Oeste e o trânsito fluía, de certo modo, tranquilo. A imprensa era a única que não tinha lugar certo, espalhada por todos os cantos. Aproximadamente 15 minutos após eu ter assumido meu posto, um grupo resolveu invadir a pista e bloquear a passagem dos veículos. Ok, REC ligado. Primeiro, um policial se aproximou das pessoas que estavam sentadas no chão e ordenou para que saíssem da via. Nada aconteceu além de xingamentos e protestos por parte dos manifestantes - que fique claro manifestantes, pois nenhum índio estava em meio à baderna. Frustrada a tentativa do policial, ele se afastou e, logo em seguida, apareceram outros dez, sem proferir palavra sequer, atirando spray de pimenta. Foi o estopim. Algumas pessoas correram para se proteger, porém outras resolveram combater os policiais. Foram lançadas bombas que gás lacrimogêneo e distribuídas cacetadas, empurrões e pontapés. De repente, em meio à fumaça, vejo um bloco de concreto ser jogado de uma passarela. Por sorte, muita sorte, ninguém foi atingido. Com isso, os pedaços do bloco passaram a servir de arma, além de pedaços de madeira e qualquer outra coisa possível de ser lançada contra a tropa. O gás liberado pelas bombas fazia meus olhos arderem e minha garganta secar. Sabia que não podia esfregar pois o efeito seria pior, então corri para que o vento refrescasse meu rosto. O tumulto era geral. Quando olho em direção ao prédio, uma oca dentro da "aldeia" estava pegando fogo e os índios foram forçados a sair pela fumaça e alguns empurrões. Pessoas corriam de um lado ao outro pedindo ajuda, xingando, batendo, apanhando, filmando, fotografando. Os manifestantes foram enxotados dali de maneira truculenta contudo necessária. Como se houvessem aberto uma escotilha, o lugar ficou vazio. Conseguia ouvir ao longe gritos e estouros. Alguns minutos depois parecia que nada tinha acontecido. O poder do estado prevaleceu.
03 de março de 2013. Foi minha primeira operação policial. Por não ter um horário fixo de trabalho dormi por volta de 0h15 e antes das 3h já estava na emissora. Sentia uma animação desenfreada, quase um estado de euforia. Sabia que nada daria errado pois as ocupações de favelas pela polícia para implantação de UPPs eram anunciadas com antecedência, justamente para evitar conflito entre bandidos e as forças de pacificação. Fui um dos primeiros a chegar à redação e, dentro da sala da subchefia de reportagem, havia uma pilha de coletes à prova de bala. "Qual o seu tamanho? - É M. - Só sobrou P, G ou GG. - Então vou usar um P." Preferi ter o peso junto ao meu corpo a tê-lo sacudindo em minhas costas. As pessoas foram chegando, umas com cara de sono, outras nem tanto, mas nenhuma empolgada como eu. Lá pelas tantas chegou um cinegrafista mais velho e experiente em acompanhar operações policiais e, sabendo que era minha primeira vez neste tipo de matéria, perguntou se eu estava tranquilo. Disse que sim e ele, como uma humanidade e seriedade que nunca tinha visto naquele cara de costume brincalhão, me aconselhou: "não se afobe. Se tiver tiroteio fique junto das paredes e nunca atrás dos policiais. E não ande pelo meio da rua, sempre pelos cantos. Hoje não é para ganhar prêmio, é para voltar para casa." Aquela mensagem fez com que eu refletisse sobre o que de fato estaria por vir. Não era uma gincana. Era uma operação policial contra o tráfico de drogas e minha obrigação era documentá-la sem fazer parte dela. Alguns minutos depois chegou um outro cinegrafista que estaria na mesma equipe que eu - ele fazendo o vivo e eu o pré gravado - e, chegada a hora, partimos para o Complexo do Caju. Encontramos o primeiro bloqueio, composto por duas viaturas da polícia militar e agentes de trânsito, próximo ao estádio do Vasco e, conforme avançávamos ao nosso ponto, a quantidade de policiais, civis e militares, ia aumentando. Chegamos à nossa base, que ficava em frente à portaria de São Januário, pouco antes das 5h. Havia, além de outras duas equipes da TV, três viaturas da policia civil e uma espécie de delegacia móvel estacionadas ali. Do outro lado da rua, pessoas bebiam em um bar ouvindo música num volume bem alto, indiferentes ao que estava por vir. O tempo foi passando. O sono foi se aproximando.. Sem aviso algum, ouvi um barulho muito alto de hélices cortando o ar e, de repente, como se tivesse sido coreografado, apareceu o helicóptero da policia civil sobrevoando a favela a menos de 20 metros de nossas cabeças; quase ao mesmo tempo, dois blindados, talvez do exército, dobraram a esquina à minha frente abrindo as portas traseiras e muitos policiais desceram, fortemente armados; mais de 15 carros de polícia chegam logo atrás com mais agentes. Parecia um filme. Eu, impressionado com aquela cena, vejo de soslaio os cinegrafistas ligando as câmeras e correndo em direção ao comboio que acabara de entrar na favela. "Chegou a hora". Começou assim meu dia de trabalho. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

24 de dezembro de 2012. Escrevo em tempo real. São 21h30, véspera de Natal e ainda estou na redação cobrindo tabela, notadamente. Saio às 0h. Meio deprimente virar o Natal trabalhando, mas faz parte da profissão e não me arrependo de nada. Algumas horas antes de sentar para escrever, o subchefe me avisa que houve uma perseguição policial a bandidos que resultou em um cerco, com direito a helicóptero rondando a área, troca de tiros, um marginal ferido e outras três pessoas mortas, porém nada confirmado. Sigo até o endereço imaginando que ou pegaria a matéria do dia, ou seria um alarme falso. Pois bem. Chego ao local e nada. Pergunto para um morador "soube de alguma coisa?" e ele responde "eu vi o helicóptero, mas há duas horas mais ou menos". Quase certo de que o segundo 'ou' virava realidade, vejo o carro de outra emissora passar pela rua onde estávamos. Pisca farol, buzina. Emparelhamos o carro junto ao deles e trocamos informações. Nada mais que suposições passadas por ambas as redações. Entramos em acordo que seria melhor seguirmos para a delegacia responsável pela área a fim de apurar a ocorrência. Chegando lá, uma equipe de uma terceira emissora estava à porta da DP. Sim, o caso era real, mas sem a magnitude com o qual nos foi passado: uma perseguição após um assalto a um mercado. Logo ao descer do carro sou chamado pelo produtor da terceira equipe para fazer imagens de um dos presos. Delegacia é pior que cemitério. Ao entrar escuto dois policiais militares conversando "e junto com ele a gente apreendeu a faca". Passando pelo balcão vejos cidadãos cabisbaixos, sentados às mesas, prestando depoimento. Mais uma porta à direita e uma logo à esquerda, chego à área da cela. Vi apenas uma porta de ferro maciço, pintada de amarelo. O agente a abre e chama "vem cá que agora você vai ficar famoso". Sai um moleque franzino, moreno, trajando apenas uma bermuda larga. À têmpora estava colado um esparadrapo tão branco que chamava a atenção por destoar do corpo encardido do sujeito. "Ah, não, o que eles estão fazendo aqui?", choramingou. O agente ordenou que ele saísse e não houve alternativa. O marginal abaixou a cabeça e entrou em uma sala logo ao lado para a apresentação. Eu, sinceramente, ainda não sei como me comportar nesse tipo de situação. Costumo apenas ficar calado e filmar. Alguns badidos não têm medo da câmera e ficam com o peito estufado e a cabeça levantada, enquanto outros tentam esconder o rosto com a mão e ficam tímidos. O segundo caso foi o que aconteceu. O cinegrafista da segunda equipe (gente boníssima, diga-se de passagem), muito mais experiênte que eu, pediu para que o meliante levantasse o rosto, sem êxito. Então partiu para uma outra estratégia, conversando com ele. Perguntou o nome, o que era aquilo na testa... O nome dele era X, 19 anos, primeira passagem e, segundo ele, aquele curativo era consequência de uma agressão cometida pelos policiais. Ao saber a idade do rapaz, o cinegrafista lamentou "você tem idade para ser meu filho. Você fez essa besteira mas quem sofre são seus pais, sua família", e então X falou "meu filho" e começou a chorar. Não copiosamente, mas soluçou e, de fato, seus olhos encheram de lágrimas.

Acredito que ele realmente deve pagar pelo o que fez, mas seu filho, com certeza, não merece passar o Natal sem o pai.

sábado, 15 de dezembro de 2012

13 de dezembro de 2012. Lá pelas tantas fui fazer imagens de um novo QG da Defesa Civil onde todo o estado é monitorado em relação à meteorologia. Uma sala grande, com uns vinte computadores, um telão enorme que cobria praticamente toda a parede, mapas, TVs ligadas nos principais canais de notícia.. Vazia. Todas as cadeiras esperando serem preenchidas por pessoas capazes e dispostas a salvar vidas. Perguntei ao representante se haveria como simular o funcionamento daquele centro, com pessoas, computadores ligados, falatório. Prontamente, ele trouxe uns 15 soldados ou agentes do grupamento ali estabelecido. Todos sentados à frente dos computadores, comecei a filmar. Enquadramento aqui, foco ali e, quando olho pela janela, o céu parecia carregar os caveleiros do apocalipse. Nuvens negras cobriam todo o céu, trazendo trovões, raios e muito vento. Uma chuva rala, confesso, mas a tempestade iminente era ameaçadora. Aquilo seria muito ruim pra cidade, mas ótimo pra mim! Olhei para o lado, esperando manisfestações de expectativa e apreensão dos profissionais ali presentes. Nada. Continuei a filmar, três minutos a mais. "Pessoal, terminei. Obrigado! [agora o bicho vai pegar!!]". Nada. Todos desligaram seus respectivos computadores, levantaram-se e deixaram a sala.

sábado, 3 de novembro de 2012

2 de novembro de 2012, dia de finados. Desde que me entendo por gente lembro que chove neste dia e ontem não foi diferente. Fui cobrir um aulão de revisão pra prova do ENEM, que acontece neste fim de semana. Quase 500 jovens acordaram cedo, com aquele tempinho chato, pra tirar as últimas dúvidas sobre a prova mais importantes de suas vidas. Os professores, nenhum aparentando ter mais de 40 anos, tentavam fazer da aula um momento de descontração. Eram brincadeiras, dinâmicas e palestras motivacionais. A penúltima destas palestras foi ministrada por um senhor de muita idade - não era professor - que caminhava de bengala, porém tinha um olhar muito perspicaz. Esse senhor fora concentrado no campo de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial. Eu, preocupado em filmar, não pude prestar atenção em todo o seu discurso, mas ele ficou preso naquele lugar por quatro anos quando criança. A ideia da palestra era contar uma história de superação àqueles jovens e mostrar que desistência não é a melhor opção. Quando achei que já tinha um número razoável de takes, sentei pra assistir. Não lembro de tudo dito por ele, até porque me concentrei apenas nos minutos finais, mas vou tentar reproduzir a aula de vida dada por aquele senhor.

A primeira lição que lembro dada por ele é que não importa a camisa que vestimos, ou a calça, gravata, sapato. Ele passou quatro anos com a mesma roupa, sem tomar banho, e chagas cobriam seu corpo por conta da coceira que sentia. Fome era algo constante. As pessoas morriam a sua volta todos os dias e uma das coisas que ele mais se arrepende é de não ter dito ao pai quanto o amava, pois presenciou a morte deste ente querido e nunca poderá dizer o amor que sentia por ele. Pediu pra falarmos aos nossos pais o quanto os amamos, sem medo, mesmo que eles já saibam disso. Durante a Guerra as pessoas eram divididas por raças: judeus, negros, germânicos... mas que na verdade a única raça que existe é a humana. Os animais, estes sim, são divididos em raças de equinos, caninos, suínos... e os que são racistas pertencem a estas raças, em especial a dos suínos.

Não consigo lembrar o que veio antes destes dizeres, mas com certeza foi extraordinário pois, quando a palestra chegou ao final, todos aplaudiram de pé. Todos. 


terça-feira, 30 de outubro de 2012

Faz quase quatro anos que publiquei meu último texto neste blog - que não necessariamente é o que segue logo abaixo, já que apaguei quase todos deixando apenas os que mais significam pra mim, por uma razão ou outra - e, depois desse longo período, resolvo voltar a escrever. Muita coisa aconteceu nesse tempo. Pessoas entraram na minha vida, pessoas saíram da minha vida. Deixei lugares e conheci muitos outros novos. Enfim, não sou mais aquele que retratava neste blog, com o ardor do coração, coisas do meu então cotidiano. Deixei a poesia de lado. Deixei um pouco da música de lado. Deixei boa parte do meu cabelo de lado. Mas, em contraponto, ganhei algumas coisas. Tirando ''alguns muitos'' quilos a mais e certas vicissitudes, ganhei experiência de vida. Vi coisas. E ainda vejo coisas da vida. Pra quem não sabe, me tornei repórter cinematográfico de uma grande emissora de TV. Digo ''grande emissora de TV'' pois não pretendo dar nomes a pessoas ou citações. Os que me conhecem sabem onde trabalho e com que pessoas convivo, e isso basta. São três anos de carreira - entre estágio na faculdade e a atualidade - em um emprego que considero privilegiado. Privilegiado sim, apesar dos pesares. Mas não vou entrar em detalhes. E o que almejo aqui é contar um pouco da minha rotina, que não existe, já que muitas pessoas me sugeriram que o fizesse. Talvez seja interessante, talvez um pé no saco.. Talvez. 

Não tenho condições de contar coisas que aconteceram nesses últimos anos, infelizmente. Então começo por ontem, dia 29 de outubro de 2012. No fim de semana anterior um jovem fora assassinado em Cordovil por PMs que confundiram o som do estouro do pneu do carro dele com o de um tiro. Absurdos à parte, fui cobrir o enterro do rapaz. Fazia tempo que não ia a um enterro tão cheio. Digo isso pois, desde que comecei a trabalhar, ir a enterros tornou-se comum. O rapaz devia ser bastante querido. Muita gente chorando, revoltada. Lá pelas tantas, começa uma gritaria e logo ligo a câmera. Era a mãe do falecido, inconsolável, sendo carregada pra fora da capela. Trastornada, ela pedira, sem êxito, pra que não fechassem o caixão. Começa o cortejo. Um sol terrivelmente forte em Irajá, mas nada parecia se sobrepor à dor da perda. No momento de selar o túmulo, aplausos e clamores por justiça. Quando os gritos  diminuíram escuto a mãe implorar ''não fecha, não fecha! Ele é alérgico e vai ficar espirrando com o calor!'' Aquelas palavras socaram minha cabeça de tal maneira que chorei. Chorei mesmo não podendo me envolver com a notícia, mesmo tendo que continuar meu trabalho. Não sei se os policiais vão ficar presos por muito mais tempo. Não sei se a corporação passará por reciclagem, se receberá melhor treinamento. Mas sei que a perda daquela mãe nunca será suprida. E também sei que aquela cena nunca mais deixará minha mente.